A alteridade louca
Por Cláudio Mendonça em 24/11/2010
“A loucura da loucura está em ser secretamente razão”. Michel Foucault
O arqueólogo do pensamento, Michel Foucault discorre em a História da Loucura sobre as diferentes maneiras com as quais a humanidade classificou e agiu diante do louco. A desrazão teve pouco espaço na tradição filosófica, René Descartes ao elaborar seu cogito ergo sun diferente de vaticinar que existia porque pensava, estabeleceu que se ele estava a duvidar, o ato de duvidar espancava as dúvidas existenciais. Presumiu que não estava louco. Assim se faz o pressuposto de todo o conhecimento que exclui o desatino como premissa.
Parece que se a loucura não intervém na economia da dúvida, é por que ela ao mesmo tempo esta sempre presente e sempre excluída do propósito de duvidar e da vontade que o anima desde o começo (página 142).
Mas loucos eram os diferentes. Assim simplesmente ao longo dos séculos foram internados, excluídos, metidos em pocilgas, todos aqueles dissonantes de um estatuto da razão que punia os excessos, os excêntricos, os que contrariavam uma normalidade forjada em interesses, crenças sociais e desejos recalcados. Aqueles que não dominavam as paixões, não praticavam a matétrica, libertinos, pederastas, perdulários que se opunham às idéias da castidade, temperança e praticavam os bons costumes viveram o ranger dos dentes, classificados na loucura que os segregava e punia.
Nós os modernos começam, os a nos dar conta de que sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as inadaptações sociais, corre uma espécie de experiência comum da angústia. Talvez, para o mundo clássico, também houvesse uma economia do mal, uma experiência geral do desatino. E neste caso, ela é que serviria de horizonte para aquilo que foi a loucura durante os cento e cinqüenta anos que separam a grande internação da “libertação” de Pinel e Tuke. (Michel Foucault 2009:108)
Os que tinham a razão extraviada passavam a encarnar o Outro de todos os Mesmos de uma sociedade que praticava a permanente patrulha levada a cabo pelos pequenos policiais sociais espalhados por toda a parte prontos para denunciar trazer a normalidade e a paz social expelindo os incorrigíveis ou os que não compartilhavam das mesmas capacidades e apetências dos normais que compunham a maioria que identitariamente se afirmava como tal.
Nesse sentido a exclusão médica clássica segue o movimento mesmo de sua época, pois o que se encontra agora em questão é o imperativo de descrição e ordenação tipicamente clássicos. E, como alteridade radical do Classicismo, a loucura parece escapar a toda a teorização. E como “ aquilo que escapa” nada mais é que outras palavras para se definir o outro, torna-se preciso um empreendimento maciço para objetivar tal alteridade. (Rafael Haddock-Lobo 2008:67)
Os doentes da moral que lotaram os antigos e desativados leprosários, subsidiados e estruturados em centros de poder a serviço das instituições que lá ocultavam escândalos e domesticavam aqueles que se opunham aos mandamentos sociais assim declarados pela coletividade, pelo conjunto da sociedade, em vista do homem comum e uniforme que buscava salvaguardar os tão relevantes e inquestionáveis valores sociais de interesse geral.
Mais tarde no movimento humanizante de Philippe Pinel e William Tuke que cerraram os grilhões e definiram o fim dos maus tratos e os critérios do tratamento agora como doença, passamos a experimentar o momento da fundamentação do homem enquanto tal, detentor de sua verdade em um movimento dialógico que ao mesmo tempo tem de falar através da psicologia a linguagem da loucura.
Uma vez que só se pode falar a linguagem da alienação, a psicologia, portanto só é possível na crítica do homem ou na crítica de si mesma. Ela esta sempre, por natureza, na encruzilhada dos caminhos: aprofundar a negatividade do homem ao ponto extremo onde o amor e morte pertencem um ao outro indissoluvelmente, bem como o dia e a noite, a repetição atemporal das coisas e a pressa das estações que se sucedem – e acabar por filosofar a marteladas. Ou então exercer-se através de retomadas incessantes, dos ajustamentos do sujeito e do objeto, do interior e do exterior, do vivido e do conhecido. (Michel Foucault 2009:522).
Conclusão
A Lei da Indiscernibilidade de Idênticos e a da Identidade de Indiscerníveis ou Lei de Leibniz – onde se dois objetos tem exatamente as mesmas propriedades, então são idênticos – pode construir um universo composto de triângulos eqüiláteros de mesmo perímetro então e portanto impossível de diferenciar seus elementos o que impossibilitaria mesmo a sua distribuição no espaço ou mesmo diferenciação entre qualquer substância componente deste. Da mesma forma podemos deduzir que, de fato, as coisas somente são iguais a elas mesmas em um dado momento de tempo. Por isso mesmo, entender a questão da diferença em oposição à filosofia do mesmo, ao humanismo do “nós as gentes” que prescreve a violência dos que vêem o universo em categorias identitárias, catalogadas, classificadas, arroladas em níveis e grupos de toda a ordem. Vale inscrever aqui o belíssimo texto de Jorge Luis Borges que inaugura o texto de Foucault que parece tratar sobre as palavras e as coisas.
Os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cétera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas. (prefácio, IX).
A linguagem pela ótica da escrita desconstrucionista possui o caráter sempre duplo de universalidade e de individuação. Cada palavra traz um sentido que se coloca em outro sentido, que se apóia em uma palavra que traz um diferente significado e assim se estabelece a estrutura do rastro sem origem e nem caminho certo a percorrer. A língua que falamos é necessariamente a do outro, que já existia antes de nós e desde sempre e assim perdurará. Que admite a tradução como ferramenta, a substituição de uma palavra pelo seu aparente equivalente significado, ou mesmo o ritual maquinal que até o Google é capaz de fazer com inteligência artificial ou seja sem inteligência alguma. A simples troca de uma palavra pela outra ou a refinada técnica ou mesmo a arte de atribuir um sentido próprio, na ficção de se estar preservando aquele sentido que um dia ali esteve, mas este é para sempre inapropriável e irrestituível. Não há como não profanar o ideário da linguagem “que diz a todos o que todos dizem e como o dizem”. O belíssimo texto Torres de Babel de Derrida que trata do conhecido mito de uma língua de origem ou da hipótese de uma tradução plena. A capacidade da transmissão da idéia em seu sentido exato, único, absolutamente peculiar. Como se, e apenas como se fosse a própria pessoa naquele instante de tempo com toda a história e contexto que marca a diferença infinita, indizível e inexorável. O logos universal de genealogia única.
E para traduzir uma na outra, no interior da mesma língua ou de uma língua à outra, no sentido figurado ou no sentido próprio, enveredar-se-ia por vias que revelariam rapidamente o que essa tripartição tranqüilizadora pode ter de problemática. Muito rapidamente: no instante mesmo que pronunciando Babel experimentamos a impossibilidade de decidir se esse nome pertence, propriamente e simplesmente, a uma língua. E o que importa é que essa indecidibilidade elabore uma luta pelo nome próprio no interior de uma cena de dívida genealógica única, os Semitas querem colocar razão no mundo, e essa razão pode significar simulatnaeamente uma violência colonical (pois eles universalizariam assim seu idioma) e uma transparência pacífica da comunidade humana. (Jaques Derrida 2006: 25).
Linguagem disseminada, encarnando singularidades passantes em momentos únicos e ao mesmo tempo perdidos e irrepetíveis. Heráclito de Éfeso demonstra a inigualabilidade do devir: Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e reúne-se; avança e se retira. Rio, quiçá, o da mitologia, o Lethe, que corre no submundo do Hades onde os espíritos bebiam da sua água, esqueciam os saberes, e suplantavam a memória. Os mais sábios eram aqueles que pouco saciavam a sede ali e voltavam mais desesquecidos a praticar a verdade por revelação ou convencimento. Alteridade fundamentada na linguagem universal – o quanto poderia ser no sonho decantado do Esperanto – ou no idioma do império dominante, na matemática que se faz valer a qualquer ente dotado de razão lógica e, ao mesmo tempo e em exata intensidade, faz valer a mesma pequenez do singular, onde nem o indivíduo é igual a ele mesmo, e cada um a cada dia professando uma nova escrita, disseminando uma nova ecritura, tão própria como se pode ser e tão do outro como, desde sempre, o foi.
*Cláudio Mendonça foi chefe de Gabinete Parlamentar na Assembléia Nacional Constituinte (1988); Secretário Municipal de Fazenda e Administração (Resende, 1989-92); Secretário de Estado e Presidente do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (1994); Coordenador das áreas de Fazenda e Administração do Estado do Rio de Janeiro (1999-2002); Consultor do Banco Mundial (2002); Presidente do Instituto Brasileiro de Educação e Políticas Públicas – IBEPP (2002), Presidente da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro – FAETEC (2003); Secretário de Estado de Educação do Rio de Janeiro (2004-2006); Membro do Conselho de Análise Econômicas e Sociais do Rio de Janeiro (Fecomércio RJ – 2008); Presidente da Fundação Escola de Serviço Público FESP-RJ (2007/2009); Presidente Interino da Fundação Centro de Informação e Dados do Rio de Janeiro – CIDE (2008/2009); Em outubro de 2008 foi designado Conselheiro Titular do Conselho Estratégico de Informações da Cidade, do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos – IPP; Em abril de 2009 passou a presidir a Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro – CEPERJ. Em 01 de maio de 2009 foi nomeado como membro do Conselho Consultivo Municipal da Prefeitura de Niterói. Atualmente é Subsecretário de Estado da Subsecretaria de Capacitação de Pessoal da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (SEPLAG). Autor dos Livros: “Solidariedade do Conhecimento” e “Você Pode Fazer a Reforma Educacional”.
Fonte: Debates Culturais
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