Arte e Pensamento
Por Cláudio Mendonça em 03/03/2011
O primeiro movimento do infante, após o nascimento, é refugar a realidade, fonte, para ele de uma ansiedade catastrófica. Ao saltar do ventre materno para a luz do mundo, o recém-nascido, por mercê da prematuração, por falta de equipamento instintivo, cai no abismo, recebe na carne um montante de estímulos para cuja acalmia a realidade pouco ou nada pode fazer. (Hélio Pellegrino)
O Stanford Encyclopedia Of Philosophy (2007) possui dois verbetes que poderiam nos ajudar a inaugurar este trabalho a partir das definições de arte e de arte conceitual. Ambos advertem o leitor da dificuldade em enfrentar o tema e os incontáveis pontos de vista e aspectos que reclamam inserção. Inclusive a hipótese da absoluta inutilidade de se conceituar arte sob o ponto de vista filosófico tem sido enfaticamente debatida. Naturalmente, as definições variaram ao longo do tempo e o assunto se mistura com a própria história da filosofia. Benedito Nunes, no belíssimo livro Os Sentidos da Paixão, chama a atenção para três categorias de desrazão que eram considerados dons divinos assim elencados em Fedro, um dos Diálogos de Platão: os que caracterizam adivinhos e profetas, a possessão ritual dionisíaca e o transporte amoroso, e neste caso o autor faz remissão ao livro O Banquete também denominado O Simpósio, quero crer, em especial, a bastante famosa fala de Aristófanes e as observações finais de Sócrates. Minha curiosidade ficou aguçada com a tal possessão ritual dionisíaca e por ela devemos entender não a idéia mais evidente da catártica (chatarsis) evocação cântica que caracterizava a tragédia grega, como algumas manifestações de grupos de mulheres que por razões as mais diversas se afastavam da civilização da época, cobriam o corpo com cinzas e viviam de comer raízes, plantas e pequenos animais em tentativa de comunhão com a natureza. O desatino, podemos dizer, sempre foi considerado descabido pela sociedade e o pensamento Grego, o que torna o trecho ainda mais interessante ao mesmo tempo em que o brasileiro elabora que Eros é mola mestra da formulação filosófica e que a realização do thaumazein, sensação de estranhamento em face do universo, condiciona o pensamento à compreensão da filosofia em uma sensação que encerraria um sintoma comparável com o Kavod hebraico ou mesmo à síndrome de Stendhal experimentada originalmente em Florença, que concentra um volume imenso das obras do Renascimento. O texto, de um dos fundadores do pensamento filosófico, trata da poesia, assunto que em Platão ganha a dimensão de divisor de águas e por que não repetir, de fomento da controvérsia:
A terceira manifestação de possessão e de delírio provém das Musas: quando se apodera de uma alma delicada e sem mácula, desperta-a, deixa-a delirante e lhe inspira odes e outras modalidades de poesia que, celebrando os numerosos feitos dos antepassados, servem de educar seus descendentes. Mas, quem se apresenta às portas da poesia sem estar atacado do delírio das Musas, convencido de que apenas com o auxílio da técnica chegará a ser poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo a eclipsar-se sua poesia, a do indivíduo equilibrado, pela do poeta tomado do delírio. (Platão 2007:69).
Não há como dar prosseguimento a este texto sem percorrer duas trilhas que se interrelacionam e irão trazer elementos basais à discussão sobre o tema aqui proposto: a decisão platônica elencada em A República no sentido do banimento da poesia e a questão intrínseca da verdade. Alan Badiu é dos autores que tenta esclarecer a posição de Platão. A poesia como a arte representativa – podemos excluir, prima facie, a música sem letra – produzem cópias do mundo aparente e esta ação de mímesis seria danosa para a sociedade por ilusória e geradora de simulacros ou cópias das cópias. Convém a leitura do início do livro X onde uma das assertivas sobre a poesia é objeto de debate entre Sócrates e Glauco.
A verdade é que – continuei – entre muitas razões que tenho para pensar que estivemos criando uma cidade mais perfeita do que tudo, não é das menores a nossa doutrina sobre a poesia. – Que doutrina? – A de não aceitar a parte da poesia de caráter mimético. A necessidade de a recusar em absoluto é agora, segundo me parece, ainda mais claramente evidente, desde que definimos em separado cada uma das partes da lama. – Que queres dizer? – Aqui entre nós (porquanto não ireis contá-lo aos poetas trágicos e a todos os outros que praticam a mimese), todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem o antídoto o conhecimento de sua verdadeira natureza. – Em que se baseias para falares assim? É necessário que eu diga – confessei. No entanto o respeito e a admiração que nutro por Homero desde a minha infância impede-me de falar. Na verdade, parece ter sido ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos poetas trágicos. Mas não se deve honrar um homem acima da verdade, e, antes pelo contrário, deve-se falar, conforme eu declarei. (Platão 2000:295).
A divergência entre filosofia e poesia é muito anterior a Platão e, acredito, se refere a maneira como a verdade se coloca diante do homem. O poema ao provocar afetação, e o pensador grego se condena por sofrê-la, escapa do pensamento encadeado de tal forma que cada idéia contenha a razão da seguinte e por sua vez seja demonstrada pela conseqüente, onde o princípio da não contradição seja plena e obsessivamente perseguido e respeitado. O filósofo marroquino aprofunda esta idéia com o conceito de Dianóia, ou o pensamento encadeado, com sua expressão maior, a matemática (mathematika) colocando o matema em oposição ao poema. Em outro campo do pensamento se situa a Noesis ou intuitividade. É a primeira que vai produzir a Episteme, a práxis, techne e phronesis as quais nos referiremos mais adiante no pensamento de Aristóteles. A apreensão dos sentidos poderiam ocorrer quer pela via do racionalismo puro, mas ainda pelo caminho intuitivo. O poema proporciona uma experiência de entendimento que se fundamenta nas sensações, no phatos, tristeza, dor, emoção que se sucedem em imagens. Badiu declara a cisão:
A oposição fundadora é finalmente a seguinte: a filosofia não pode começar nem apoderar-se do real político, a não ser que substitua a autoridade do poema pela do matema. O motivo profundo dessa oposição entre matema e poema é duplo. Por um lado, o mais evidente, o poema permanece sujeito à imagem, à singularidade imediata da experiência. Já o matema tem seu ponto de partida na idéia pura, e em seguida só confia na dedução. De modo que o poema mantém com a experiência sensível um laço impuro, que expõe a língua aos limites da sensação. Desse ponto de vista, é sempre duvidoso que haja realmente um pensamento do poema ou que o poema pense. (Alain Badiu 2002:31).
É neste sentido que Heidegger radicaliza a mesma idéia. A questão da matemática para os gregos suplantava as questões de aritmética, álgebra e geometria. Ia muito além da abstração quantitativa, a capacidade de converter uma fórmula em um poliedro, ou mesmo a solução de problemas. A questão transcende o conceito moderno e estrito com que tratamos do tema. O diálogo de Sócrates com o escravo de Ménone tenta afirmar o conhecimento matemático como atávico, pertencente ao ethos humano. Ainda que em todas as sociedades possamos observar algum desenvolvimento da contagem, em várias civilizações não existe palavra ou sistema de contagem para números de alguma grandeza. O sistema para números de dois ou mais algarismos servem a grupos humanos que precisam ou desejam quantificar montantes indiscerníveis de entes. Stephen Pinker acusa a prevalência entre os povos iletrados de contar, um dois e uma palavra que representa “muitos”. Talvez o advento da agricultura tenha trazido a sofisticação de nosso sistema numérico. Assim sendo, os gregos relacionavam a própria educação ao conceito da matemática com a capacidade de sistematização, de criação de método, do conhecimento elaborado independente da experiência.
Pois com “matemático”, pensamos logo e exclusivamente em números e relações numéricas, em ponto linha, superfície, corpos (elementos, figuras do espaço). Todavia, tudo isso só se chama de matemático num sentido derivado, à medida que satisfaz justamente ao que pertence originária e propriamente à essência das questões de apropriação e comunicação. Estes temas não são para se esclarecer pelo matemático, mas ao contrário tratamos aqui de reconhecer, apropriar, transmitir, conhecimentos, axiomas, reconhecimentos, convicções, conceitos e verdades.
*Cláudio Mendonça foi chefe de Gabinete Parlamentar na Assembléia Nacional Constituinte (1988); Secretário Municipal de Fazenda e Administração (Resende, 1989-92); Secretário de Estado e Presidente do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (1994); Coordenador das áreas de Fazenda e Administração do Estado do Rio de Janeiro (1999-2002); Consultor do Banco Mundial (2002); Presidente do Instituto Brasileiro de Educação e Políticas Públicas – IBEPP (2002), Presidente da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro – FAETEC (2003); Secretário de Estado de Educação do Rio de Janeiro (2004-2006); Membro do Conselho de Análise Econômicas e Sociais do Rio de Janeiro (Fecomércio RJ – 2008); Presidente da Fundação Escola de Serviço Público FESP-RJ (2007/2009); Presidente Interino da Fundação Centro de Informação e Dados do Rio de Janeiro – CIDE (2008/2009); Em outubro de 2008 foi designado Conselheiro Titular do Conselho Estratégico de Informações da Cidade, do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos – IPP; Em abril de 2009 passou a presidir a Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro – CEPERJ. Em 01 de maio de 2009 foi nomeado como membro do Conselho Consultivo Municipal da Prefeitura de Niterói. Atualmente é Subsecretário de Estado da Subsecretaria de Capacitação de Pessoal da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (SEPLAG). Autor dos Livros: “Solidariedade do Conhecimento” e “Você Pode Fazer a Reforma Educacional”.
Fonte: Debates Culturais
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