Bônus não gera motivação

‘Bônus não gera motivação’

Ricardo Carvalho

21 de julho de 2011 às 15:04h

Após a divulgação dos resultados de um estudo comandado pela RAND Corporation, influente instituto de pesquisa que analisa políticas públicas nos Estados Unidos, a cidade de Nova York decidiu abolir permanentemente o programa que distribui bônus por mérito a professores do município. O Departamento Municipal de Educação nova-iorquino já havia suspendido temporariamente os pagamentos em janeiro devido a “preocupações quanto a sua eficácia”.

 

O programa, adotado pela primeira vez no ano letivo 2007-2008, distribuiu 76 milhões de dólares a docentes nos últimos três anos e é a inspiração da política de pagamento de incentivos do estado de São Paulo. Aqui, os professores que superam a nota estabelecida para a sua escola no Idesp (Índice de Desenvolvimento da Educação), que considera as provas do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar) e também dados da progressão escolar, podem receber até 2,4 salários adicionais no final do ano. Em 2010, foram 340 milhões de reais a professores e funcionários de mais de 70% dos colégios da rede.

A pesquisa coordenada pela RAND constatou que não havia desempenho superior entre os alunos cujos professores recebiam as bonificações e os estudantes matriculados nas demais instituições. “Nós não encontramos melhoras no desempenho dos estudantes em nenhum ciclo de ensino”, disse ao The New York Times Julie A. Marsh, pesquisadora-chefe do estudo. “Muitos diretores e professores viam os bônus como um reconhecimento e uma recompensa. Mas não era necessariamente algo que os motivava”. Outra hipótese para falta de eficiência da política é que as escolas da cidade norte-americana já enfrentam pressões para aumentar as notas de seus alunos, sob a ameaça de severas sanções. “Nesse ambiente, um pequeno bônus – que pode atingir 1,5 mil dólares por professor após descontar os impostos – talvez não seja significante”, relatou o jornal.

Em nível nacional, o governo norte-americano é entusiasta das bonificações. Os repasses federais saltaram de 99 milhões em 2006 para 439 milhões no ano passado.

O professor de Educação da Unicamp e especialista em avaliações, Luiz Carlos de Freitas, faz duras críticas a essa política de meritocracia. Em entrevista a CartaCapital, ele qualificou de “mera cópia improvisada” o modelo adotado em 2008 pelo estado de São Paulo. “Essa forma de pensar vem da área dos negócios. Os reformadores empresariais acham que se puderem pagar mais aos professores cujos alunos se saem melhor nas provas, isso poderia ser um estímulo. Ocorre que os professores não entram nessa profissão motivados unicamente por dinheiro – como se fossem vendedores de carros interessados nas comissões”, destaca. Confira os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: Como foi a adoção dessa política pelo governo de São Paulo? Nova York era tida como um exemplo a ser seguido?

Luiz Carlos de Freitas: Os reformadores empresariais brasileiros restauraram uma velha ideia do tempo da ditadura: o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil. Nova York é tida como a Meca para os reformadores brasileiros. Foi assim que, em 2008, o Estado de São Paulo embarcou nesta política. Primeiro foi o secretário de Educação John Klein a aplicar isso em Nova York. Com sua saída da secretaria, sob suspeitas de a cidade estar inflando as notas dos alunos com testes fáceis para acessar verbas federais, os que o sucederam mantiveram a política. O Obama impulsiona a política de pagamento por bônus disponibilizando recursos federais para quem as aplica. O que o Brasil tem feito é copiar tais ideias – e não é só a do bônus. Felizmente, aqui, o governo federal não embarcou nisso.Há um mês ou pouco mais a National Academy os Sciences americana divulgou um estudo sobre o estado da arte em aplicação de incentivos (bônus) nas escolas americanas e recomendou cautela com esta política. Já apontava que não havia efeitos positivos a serem comemorados com sua adoção. A própria RAND, que implodiu com seu estudo o programa de bônus de Nova York este mês, já havia alertado em pesquisas anteriores a não eficácia destas políticas. Mas há poderosas razões que fazem com que os reformadores empresariais da educação americana insistam nela: tais ideias giram um mercado de 800 bilhões de dólares. Dificilmente eles (e os nossos que estão construindo aqui seu mercado) vão aceitar o resultado destas pesquisas. No caso do Brasil, há pelo menos 15 secretarias de educação pensando em usar o sistema de bonificação.

CC: Quais as principais deficiências dessa política de bônus? Escolas localizadas na periferia, com maiores problemas de evasão escolar, por exemplo, não estariam em desvantagem?

LCF: É óbvio que há uma poderosa interação entre a escola e sua vizinhança – o “efeito vizinhança”, como tem sido chamado. Todos sabemos que os testes não medem somente competências e habilidades, medem juntamente, com isso, o “nível sócio-econômico”. Estigmatizar uma escola e seus profissionais que dão duro em condições adversas somente levará ao desânimo e ao abandono da profissão ou das escolas situadas nas periferias. Quem quer dar aula em uma escola que é apresentada à comunidade como “fracassada”? Quem quer dar aula em uma escola que não pode ser qualificada para ganhar bônus? Melhor procurar outras onde o esforço seja menor e mais garantido. Mas o problema maior é que você não pode isolar o efeito de um bom ou mau professor, sobre um aluno, dos outros professores que deram aulas a este aluno. Um aluno que teve um mau professor em um ano, continuará sentindo as suas consequências, mesmo que no ano seguinte caia com um bom professor. E este bom professor, por mais que se esforce, não poderá deixar de sentir, em seu trabalho, o fato do aluno ter estado antes com um mau professor. Se ele não recebe o bônus por causa destes alunos, certamente cairá no desânimo. Em um mesmo ano podem haver professores bons e maus, eles afetam os alunos e tais efeitos não são separáveis.

CC: O fim da política de bônus em Nova York ocorreu após um estudo revelar não haver diferenças de aproveitamento entre escolas que recebiam bonificações e escolas que não recebiam. Existe algum controle no modelo paulista?

LCF: O estudo da RAND foi a gota d’água. Mas antes já havia o estado da arte produzido pela prestigiosa Academia Nacional de Ciências americana, o qual foi solenemente ignorado pelos reformadores empresariais brasileiros. No caso de São Paulo, não há um delineamento experimental que procure investigar o programa de bônus. É mera cópia improvisada. Nova York é muito mais “controladora” do que São Paulo, com relatórios mais sistemáticos. Além disso, o Departamento de Estado contrata pesquisadores independentes para examinar seus programas. No Brasil há apenas “fé” nestes programas e quase nenhum estudo sistemático. Os reformadores convencem os governadores ou secretários de Educação a aplicar estas ideias, citando “estudos internacionais que provam sua eficácia”. Os governadores, com pressa de apresentar resultados antes das próximas eleições, embarcam nestes programas.

CC: Essa avaliação em São Paulo, baseada em grande parte nas provas do Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar), é confiável?

LCF: Não existe sequer a possibilidade de análise independente das bases de dados do Saresp em São Paulo. Em geral, no Brasil, é muito precário o estágio de produção, aplicação e processamento dos testes. São feitos por empresas privadas contratadas pelos governos e seus resultados não são submetidos a auditoria. Não sabemos com que “saúde” tais provas são elaboradas e nem com qual metodologia são aplicadas e, seus dados, processados. Relatórios técnicos não são divulgados. Em geral, a apresentação dos resultados é feita por uma autoridade na forma de uma press release, em que ele destaca o que lhe interessa. Os Tribunais de Conta dos Estados precisam entrar na análise destas relações rapidamente. Quem paga o fracasso do programa de bônus em São Paulo que consumiu, no ano passado, 340 milhões de reais? É dinheiro do contribuinte que não gerou mais qualidade na escola. Temos que começar a cobrar “probidade administrativa” dos governos de forma que não se encantem com a primeira ideia que lhes seja apresentada, prometendo “milagre educacional a curto prazo”.

CC: Como é o debate da bonificação por mérito no restante dos EUA e em outros países?

LCF: Essas ideias penetraram na Europa também. Mas deve-se notar que os líderes do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), por exemplo a Finlândia, não usam essas ideias. Os Estados Unidos, que as usa há mais de 15 anos, estão há 10 anos estagnados na média do Pisa (desde que este iniciou) e nos testes nacionais não há melhora significativa. Há quem sustente que piorou.

CC: Você acredita que essa decisão de Nova York pode influenciar no fim dessa política também em São Paulo?

LCF: Pode arrefecer e fazer os governos pensarem um pouco mais. Em São Paulo, o Secretário de Educação (Herman Voorwald), desde que assumiu desconfia destas políticas. Por isso tem insistido na questão da carreira. Penso que há gente competente em São Paulo para aposentar a bonificação, mas há um entorno de defensores destas ideias mais antigos ligados ao PSDB que certamente dificultará esta decisão. Já era hora de São Paulo se livrar disso – ou vão passar mais vergonha.

CC: Quais as principais diferenças entre a bonificação adotada em Nova York e a paulista?

LCF: A ideia básica é a mesma, a forma de pensar vem da área dos negócios. Nova York é mais exigente e controladora. Os reformadores empresariais acham que se puderem pagar mais aos professores cujos alunos se saem melhor nas provas, isso poderia ser um estímulo a estes profissionais e até chamaria bons quadros para a educação, motivados por ganhos adicionais. Ocorre, como mostra o estudo da RAND, que os professores não entram na profissão movidos apenas por dinheiro – como se fossem vendedores de carros interessados nas comissões. Quem tiver motivação baseada em dinheiro, em geral, procura outra profissão. A RAND encontrou que os professores se motivam com sua formação continuada e com o fato de poderem ver seus alunos aprenderem – não apenas por dinheiro. Salários dignos são necessários, é claro.

Fonte: Carta Capital